quinta-feira, 3 de outubro de 2013

CARNE VIVA - Parte I

Caros Leitores!
Estes dias a morte tem sido pauta de minhas reflexões, em decorrência de estados de doença na família e falecimentos de conhecidos e parentes de amigos meus. Ai pensei neste texto que escrevi a alguns anos e que, apesar de triste, me faz pensar na importância de aproveitar melhor a vida e o o tempo.


Um instante súbito!

A paisagem obscura e clara, claramente obscura, iniciara um desvelamento que até então aquele espírito materializado negara-se a despir. Ao fechar a porta de sua escrivaninha começara a abrir uma fresta onde um fio de luz e ar ocupava espaço no território que se diluía, corroído pela vegetação humana animalesca. O movimento que escondeu os objetos carcomidos por animais artrópodes foi o mesmo que começara a esvaziar a sobrecarga de vazio que ocupava aquela forma informe, esmagada pelo peso da presença do nada.

Não teria permitido a despedida de uma lágrima se não estivesse sido apunhalado pelas aranhas laboriosas que, felizes e tranqüilas, efetivavam seus projetos instintivos de habitar espaços esquecidos.


Que instinto curioso!

Instinto que engravidava a vida daquele animal artrópode que nos seus idos e vindos da inconsciente labuta, preenchia sua vida onde o nada é sempre tudo e nada, e o tudo é o inconsciente eternizado. É certo que é a própria condição do eterno inconsciente, que é o tudo e o nada, que priva aquele ser fragilizado de fechar as portas e contemplá-las por um instante que se tornaria eterno.

Teias, teias, teias, teias... 
aranhas, aranhas, aranhas, aranhas... 
tudo e nada, tudo e nada... 
presença e ausência, presença e ausência... 
completude e vazio, completude e vazio... 
teias, aranhas, tudo, nada, presença, ausência, completude e vazio. 

O tudo que é nada. 

Assim como a presença que é ausência e a completude que é vazio e o vazio que se esvazia de nada e de tudo e que se alimenta das teias e das aranhas para recuperar a lágrima que, abortada, desapegara-se de seu corpo sem sol e sem lua.

Por mais um instante, no meio daquele instante único, seus olhos absortos desviaram-se daquela porta fechada para contemplar a mesma paisagem da nudez que se lhe apresentava. A lágrima abortada insistiu em manter-se viva diante de seus olhos aparentemente abortados, e num aceno de voracidade e angústia ela foi tragada e degustada por uma vontade movida por um lapso de consciência e reação instintiva. Lapso, que vislumbrava a recente e empoeirada paisagem do vazio. Consciência, instinto e incompreensão transitaram naquela mente perturbada pela novidade do já antigo.

Não conseguira registrar a multiplicação das lágrimas que se despediam como folhas de outono. Degustava-as, e eram como sementes em terra fértil, onde os frutos, de tantos que se geravam, caíam sobre a superfície e alimentavam a terra úmida e receptível.


Degustava suas próprias lágrimas amargas e ainda vivas que se expandiam por entre sua estrutura orgânica e se alastravam por sobre sua estrutura tátil, deslizando por entre os labirintos de seus pelos salientes, desaguando sobre os pés daquela escultura cimentada e rachada, diante da porta fechada.


Embriagara-se de suas lágrimas salobras e depressivas, angustiadas e libertadas. Embriagara-se do cheiro de cimento molhado e da paisagem nova e ainda velha, contrastando com o registro fétido de suas dores, ainda que em estado de calmaria insana.


Continua...
Até próxima quinta.

Cheiro de Vida
Gilson Reis

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