Apesar de termos nos falado tanto e de tantas prosas regadas a vinho, cerveja e, no teu caso, até com Santo Daime, ainda há muito o que dizer. Acho que é assim mesmo, numa verdadeira amizade a fonte nunca seca.
Te escrevo esta carta numa vivencia que realizo sobre pessoas de referencia em minha vida. Escrever para alguém que faz parte de minha história de vida e que está junto comigo, na mala de vivências, como alguém que contribuiu na construção, ou se preferir, nas travessias de minha vida.
Mas não vou aqui escrever a partir do que vivi contigo. Hoje não. Vou escrever a partir do que li e senti na sua página, ainda viva, da rede social. Ainda que me pareça te conhecer tão bem, foram muitas as surpresas, mas também as constatações.
Os teus alunos escreveram que tu eras o melhor professor de filosofia da vida deles. Talvez, quem sabe, foram aqueles que mais te davam trabalho e, por isso, os que mais você cuidava. Outros falaram de tua forma brincalhona de estar com eles. Estes, talvez, já haviam se aproximado um pouco mais da porta de tua alma essencial. Lembro de uma estudante mobilizando a captação de dinheiro para o translado de teu corpo, pois, para ela, não era admissível que a família não te olhasse em silêncio. Esta , talvez, já tenha se apropriado do valor que conservavas de tua base.
E os amigos! Ah querido! Imaginas o que teus amigos escreveram!! Eu escrevi quase nada. Silêncio. Penetro no silêncio que a interrupção da vida instala. Apenas expressei um verso meu diante da morte, e que diz:
Eu quero a morte da morte.
Só quero o fim do que não pode recomeçar.
Mas, outros exaltaram a tua coragem diante do aparelho policial, aliás, aquela imagem em que você é agarrado no pescoço, por um policial, e impunhas um livro na cara dele, em meio a uma manifestação de greve, é de uma nobreza política tão rara.
Outros escreveram sobre o teu lado sapeca. Querem guardar esta imagem na memória. Imagens do Naldo dando cambalhotas sem saber! Que risco! Subindo muros sem ter muito equilíbrio! Criatura tu vais cair!! Ai meu Deus! Criando personagens para diferentes cenários! Ousando um gesto mais atrevido no meio das ruas... é... a ousadia é o que se tatua na nossa memória afetiva... a quase ousadia vai perdendo energia ao longo da história.
Os amigos escreveram acerca da intensidade que representas, seja na presença visceral dos momentos de protestos, na espontaneidade dos instantes poéticos, na celebração coletiva das festas, que lá em casa serão sempre em tua homenagem, por isso, sempre alegres!!
Tua família também escreveu. Escreveu muito sobre simplicidade, senso de justiça e, também, sobre os teus novos projetos, como o de voltar a viver na tua terra natal... aliás, com a tua partida, fico pensando comigo que a terra natal nem é mesmo aquela em que nascemos...
Minha mãe, a dona Judite, que você conheceu, quando na minha adolescência, e na da Ceça também, me pedia para escrever cartas aos parentes, ditava a expressão que utilizei para iniciar esta carta (“Primeiro do que tudo...”) e finalizava dizendo: “Aqui termino, só com a nossa vista”. Acho que expressava o desejo mais profundo de fazer a travessia da escrita para uma presença física, onde fosse possível sentir o outro – mãe, irmãs, filha...- mais pertinho, mais quentinho..
E é assim que eu também termino esta carta. Agora a expressão da dona Judite soa mais espiritual, mexendo com o mais profundo de minhas crenças.
Querido Naldo.
Aqui termino, só com a nossa vista.
Eternamente
Gil...