Desatando nós
Como comecei a escrever no blog na semana passada, deveria ter iniciado com a minha apresentação, mas, como estava triste de uma tristeza muito triste por ter recém descoberto a gravidade de um problema de coluna que arrasto há anos, acabei deixando meu coração falar disso, em vez de fazer uma apresentação formal.
O texto de chegada está pronto há tempos, desde quando o blog ainda era projeto. Pronto pronto, não de fato, na verdade, rascunhado, só falta digitar, pois que prefiro escrever à mão (a velocidade dos meus dedos no teclado nunca acompanha a velocidade do meu pensamento, o que a caneta consegue fazer). Mas, acabou que o texto ficou em Atibaia e eu em São Paulo, então...
Estou em casa de uma amiga querida, daquelas de milênios-luz de amor compartilhado, Maria Mercedes e, lá embaixo, na sala de visitas, para auxiliar a minha inspiração, ela deixou Villa-Lobos ao piano. Que honra ele ter vindo do infinito especialmente tocar para mim nesta fria noite de novembro! Tempos mudados, tempos confusos.
Bem, já que o rascunho ficou, que a noite que deveria ser quentíssima está fria e que Villa-Lobos toca tão desprendido e suavemente, enquanto Fernando (Pessoa) e José Mauro (de Vasconcelos) passeiam pela sala bonita do aconchego de Mercedes, e Manuel (Bandeira), vindo direto de Pasárgada, se demora a olhar a fumaça do cigarro que sobe em espirais pela janelinha aberta, vou me aventurar nesse encontro de saudade. Florbela (Espanca) também está aqui, mas, preferiu ficar lá fora, sentindo o roçar da brisa na pele dos ombros mal cobertos com um delicado xale português. E Cecília (Meireles), a delicada Cecília de azul olhar a acompanha. Passou também Clarice (Lispector), talvez atraída mais pela fumaça do cigarro de Manuel que pelas notas de Heitor, mas, não pousou. Puxa, até Arthur (Rimbaud) veio visitar o nosso encontro! Sê bem vindo! E ali, ao fundo, com a barba grisalha? Aproxime-se mais, não o vejo direito... Ó, sim, Ernest (Hemingway). Venha, venha, compartilhe nossa noite, traga seu velho, traga seu mar.
Por que estariam esses poetas tão ilustres reunidos aqui numa noite tão comum? Ah, vieram para sentir comigo esse gostinho de esperança que tem me ocupado as entranhas nos últimos dias.
Logo que comecei a me preparar para a artrodese (vejam que nome pomposo, mas, a cirurgia é um horror! Furadeiras, serras, pinos e martelos, coluna para sempre contida em garras de titânio), Bem, logo que comecei a me preparar para a dita, escrevi a meu filho, que mora em Roma, e ele, presto me retornou pedindo que eu procurasse dois médicos seus conhecidos antes de operar. Fi-lo. O primeiro, um quiropraxista sério, ponderado, sereno, me mostrou benefícios e malefícios da operação e me orientou a tentar um tratamento convencional por, pelo menos, seis meses.
O segundo, um ancião oriental riu e me disse: "Mas, como o médico quer operar as suas costas se o seu problema é no quadril?". "É louco", pensei. Apenas disse que nunca tive problema no quadril e ele disse que me provaria que sim. Tocou em um ponto do lado esquerdo que me fez estremecer de dor e em outro do lado direito e repetiu: "É aqui que está o seu problema. Os anéis da coluna foram entortando, ao longo dos anos, por causa do desnível em seu quadril. Não adianta operar lá, se o problema é aqui." Bem, meu filho já tinha me avisado que o homem era um tanto excêntrico...
Resumindo a ópera, depois de uma hora de massagem e manipulação das vértebras e dos pés, eu saí do consultório sem a dor nas costas e com a coluna pelo menos alguns graus mais alinhada e com uma tremenda dor no joelho. Então me lembrei que há exatos 30 anos, um sobrinho querido pulou de mau jeito no meu colo e tirou o meu joelho esquerdo do lugar. Cidade pequena, simplicidade, falta de dinheiro, tratamos o "mau jeito" em casa, com rezas e emplastros. Por anos tive muita sensibilidade nesse joelho e evitava pisar forte com a perna esquerda, logo, criei uma forma de compensar essa dor e esse medo de um novo deslocamento se repetir, assim, os ossos do quadril, ainda em desenvolvimento, posto que eu era uma adolescente, se deslocaram e a coluna veio seguindo esse desnível, o que, aliado à minha estatura elevada, resultou em hérnias e desgastes e quase me levou para a mesa de cirurgia.
Bem, porque falar disso tudo num blog literário, ainda mais com visitas tão ilustres na sala de estar? É para mostrar que, muitas vezes, a gente toma o efeito pela causa e tenta amputar a perna para curar a unha encravada. Quantas tempestades poderiam ser evitadas se não nos precipitássemos no olho do furacão? Acho que essa descoberta da raiz do problema que tem me causado tanta dor e medo diante do terrível diagnóstico de "doença degenerativa progressiva" remete ao tão conhecido efeito borboleta ou aos enormes círculos concêntricos que se formam na água quando atiramos uma mínima pedrinha dentro de um lago.
Deixo isso aqui no sagrado altar do "Pegando o Gancho" como reflexão sobre todos aqueles nós que não conseguimos desatar em nossas vidas, na maioria das vezes por não termos a paciência e a sabedoria de procurar a pontinha do barbante, para poder desamarrá-los um a um. Nós cortados não são nós desfeitos. Problemas ignorados não são problemas resolvidos.
Bruno Andaluz, se aqueça, é bem provável que, em breve tempo, estejamos dançando aquele xote do Fala Mansa! Por ora, deixa-me descer e me deleitar com as notas de Heitor que se desvanecem na fumaça do cigarro de Manuel, repousando nas franjas do xale de Florbela e se diluindo no azul dos olhos de Cecília. Até semana que vem!
Isa Oliveira