sábado, 1 de junho de 2013

Naldo

Prosseguindo na homenagem, junto minha saudade à tua sensibilidade, querido Gilson, e peço licença para a postagem em dia que não é exatamente o meu.
Teu texto me trouxe tantas recordações e considerando que Naldo ia com minha cara, reporto-me pessoalmente a ele nesta carta e carga de emoção:
Querido Naldo,
quando passaste à dimensão do mistério, lembrei-me de sua consciência limpa e pura, sem nome nem forma, sendo simplesmente o que foste, lançando sementes, sementes rebeldes, propondo novidades, desafiando sem temor nem piedade, a caretice reinante e dominante.
Recordo tua leitura de A paz, do Marcelino, que concedeu ao poema a condição de poesia viva.
Recordo tua indignação ao me ver indignada e com as mãos na cintura, me interpelar: Mulé, que revolta é essa???
Naldo, pessoa valiosa...
Que das tuas sementes nasçam novos brotos, renovados.
Me despeço da tua presença e mergulho na tua saudade com um adeus que não é um adeus, visto que continuas em nossa lembrança.
Qualquer dia amigo, a gente vai se encontrar.
Com ternura,
Marli

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Naldo

Um dia um menino sonhador me disse que a vida é feita de travessias. Eu acreditei. Sonhei junto com ele e nesse universo de concordância nós viajamos por diferentes pontes. No trajeto que fizemos descobrimos um leque de discordâncias, e elas foram, aos poucos, nos unindo ainda mais. Ai descobrimos que travessias não implicam, tão somente, em sintonia de idéias, ainda que, no campo dos sonhos o horizonte seja o mesmo.

O menino se tornou uma das minhas principais pérolas de amizade. Daquelas que sobrevivem a qualquer rede social. Éramos muito mais adeptos às redes artesanais, nascidas de culturas vivas, feitas para o descanso nas horas de cansaço.

Na rede da vida nos balançávamos como crianças! Aliás, na sua dimensão mais infantil eu me amedrontava com suas brincadeiras, afinal, sua coordenação motora era um fiasco e ele sempre se desafiava. Eu brincava com ele, no entanto, eu sempre fui menos aventureiro.

Há! Como apreciava os cafés em casa, regados a diálogos profundos! Entrecortados, divertidamente, por um personagem por ele criado e que se insurgia em meio aos textos sérios de nossos diálogos. Brincar e filosofar, filosofar brincando como criaturas livres para expressar o que sentiam.

Era um menino para se viver emoções essenciais. E eu vivi! Tão intensamente que hoje, distante delas, eu vejo a vida com uma porção menor de felicidade. Sim! A porção de felicidade daquele menino era algo insubstituível. Essencial. E o que está dentro desta categoria é eterno.

Hoje vivi na memória - cuidada como uma relíquia - os instantes lúdicos das brincadeiras dos parques, das vivências em minha casa em dias de festa, nos cafés da manha nunca mais vividos como naqueles dias, nas passeatas de protesto por justiça social, nas viagens de férias, na travessia para o Mestrado e sua firme defesa de tese na USP, no carinho dele com meus familiares e amigos - só os que ele topava - nos saraus onde a sua veia indignada gritava, nos torpedos noturnos que traziam algum sabor aos dias mais amargos, no meu aniversario de 40 anos em Camaragibe...

 É... Memória é como um baú onde nos movimentos dos pequenos ciclos vamos visitá-lo para degustar saudade e ver um pedaço de felicidade ali dentro, sem permissão para se libertar, pois só ali ainda existiria. Memória é um cantinho onde o encontro - ponte se realiza na intermediação das fotos, dos amigos, dos escritos...

Quando aquele menino começava a sonhar uma nova travessia, a fez, sem desejar, atravessando uma ponte para o mistério. O menino sonhador foi encontrado sem vida, dentro de seu quarto, no Acre. Ao saber, esse seu amigo saiu a comunicar aos afetos em comum aquela que era a notícia mais triste anunciada por ele.
  
 

Ah! Como eu queria que ele, onde estivesse, fosse “à caixa dos milagres e roubasse três, com o primeiro fizesse com que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo se criasse eternamente humano e menino (...)” e, com o terceiro, que ele vivesse “na minha aldeia” comigo e com os nossos saudosos amigos.

Um ano sem NALDO 
é um tempo 
sem a indispensável 
emoção essencial.

Gilson Reis

30.05.13

terça-feira, 28 de maio de 2013


As andanças por esses saraus da cidade me permite conhecer pessoas e textos que igualmente impressionantes. Foi assim na terça-feira passada quando conheci o poeta Paulo D’Auria, no Sarau Encontro de Utopias, declamando o texto abaixo. Espero que o Paulo não fique zangado comigo por estar socializando seu texto nesse espaço. Um dia vou declamá-lo num desses saraus. É o tipo de texto que me cativa de imediato e vê-lo recitado de maneira tão intensa foi uma experiência religiosa, no melhor sentido da palavra.

O Evangelho Segundo São as Ruas

25 de dezembro de 1980, Jesus Cristo voltou! Nascido em família pobre em meio à seca do norte, não tiveram outra saída a não ser descer para São Paulo. Mas eram os anos da carestia, dos panelaços, dos arrastões em supermercados. A mãe, acostumada a paz do campo, não resistiu a tamanha mudança: enlouqueceu. O pai ainda buscou tratamento em hospital público mas, não tinha vaga, não tinha vaga, não tinha vaga. De volta pra casa, a louca não durou muito, fugiu, sumiu nas ruas da cidade.
O pai foi vivendo como pôde, de bicos. Mas o aluguel mês a mês parecia cada vez maior. Nunca soube explicar direito como foram parar na rua.
Jesus Cristo voltou! E foi pivete de farol, limpou vidro, vendeu bala, foi xingado, quase
atropelado, tomou cusparada na cara, se fortaleceu.
Fazia suas correrias durante o dia, à noite tomava seus goles com o velho e iam dormir. Sempre com um olho aberto.
Foram anos bons, duraram pouco. Tinha dezessete anos Jesus no dia em que seu pai
partiu e se viu sozinho neste mundão chamado São Paulo. Só ele e sua carroça de catador.
Teve doze amigos, uma mulher. Nunca teve filhos. Dizem que fundou uma cooperativa, que foi um desses líderes ouvido e respeitado por todos os catadores. Dizem que até milagre o homem fez. E que foi por isso que o polícia andou no seu encalço, interrogando, dando porrada em torto sem direito. Dizem que até dinheiro grosso o polícia ofereceu. E, numa dessas, lhe cantaram a bola.
Jesus Cristo voltou, tinha 33 na noite em que, debaixo de anônimo viaduto no Bresser, ele e mais dois companheiros foram queimados vivos. Nessa noite São Paulo dormia com os dois olhos fechados.

Paulo D`Auria

segunda-feira, 27 de maio de 2013

Liberdade e Resiliência no 13 de Maio

Nesta última segunda-feira do mês, faço uma reflexão acerca do dia 13 de maio, dia em que se celebra o fim do sistema escravista do Brasil, e consequentemente a libertação dos escravos. O fato de se celebrar ou não este dia já foi motivo de muitas discussões entre os negros brasileiros, pois sabemos que a libertação não devolveu aos que foram escravizados a dignidade, nem promoveu sua inserção na sociedade com direitos e o respeito que todo cidadão merece.  No entanto, é importante lembrar que, neste momento no Brasil, em situação de submissão, seja em âmbito doméstico ou nas fazendas, existia apenas 5% da população, visto que a maioria já havia sido alforriada ou estavam vivendo nos quilombos, que existiam na época, de modo que o fim da escravidão era previsto por ter se tornado insustentável em função da mudança de paradigma social das nações europeias. Logo, não houve nenhum ato beneplácito da parte da Princesa Isabel, que diante das pressões política interna e externa e a realidade da escravidão no Brasil, não lhe restava outra saída senão assinar a lei Área.  Pois bem, ainda assim a liberdade instituída oficialmente para todos os negros e negras foi muito bem vinda, pois a liberdade não tem preço. E, mesmo diante das várias formas e tentativas de destituir da pessoa negra, a característica original de todo ser humano, ou seja, o ser homem/mulher, muitos assimilaram esta negação - de não ser -, e se perderam – matando aqueles que os escravizava ou morrendo físico e/ou psicologicamente, quando não vislumbrava saídas para a vida – morte da usa existência. Muitos, no entanto, conseguiram dar a volta por cima e refazer sua vida. Podemos citar como exemplo os Irmãos da Irmandade do Rosário dos Pretos, que sendo resilientes, se reconstroem continuamente dentro deste mesmo processo de desconstrução do ser homem/mulher negra e de sua cultura, que se supõe uma consciência grupal operosa e operante que desentranha da vida presente os planos para o futuro. Eles desenvolvem alguns mecanismos de proteção como a autoestima elevada, determinação, confiança, sociabilidade, capacidade de abstrair sentidos positivos e reconhecer como efetivo o suporte do grupo. Além de poder contar com a possibilidade de estruturação de vínculos novos e reestruturar os antigos, o que favorece o desenvolvimento do espírito de mudança; de algo dinâmico, não estático. Nesta perspectiva, pertencer a esta irmandade, produziu nos negros e negras, resiliência. A fé em Nossa Senhora do Rosário, somada a outros valores sociais e culturais fazia com que não desistissem da luta por uma vida melhor e digna. A insistência em celebrar a vida, e vislumbrar um futuro melhor é proveniente da memória de seus antepassados, cuja lembrança renovava a esperança dos Irmãos, que naquele 13 de maio de 1888 celebrou a vitória da vida e da confiança que tinham em si e no grupo em que estavam inseridos. Assim, Salve 13 de maio!