quinta-feira, 30 de maio de 2013

Naldo

Um dia um menino sonhador me disse que a vida é feita de travessias. Eu acreditei. Sonhei junto com ele e nesse universo de concordância nós viajamos por diferentes pontes. No trajeto que fizemos descobrimos um leque de discordâncias, e elas foram, aos poucos, nos unindo ainda mais. Ai descobrimos que travessias não implicam, tão somente, em sintonia de idéias, ainda que, no campo dos sonhos o horizonte seja o mesmo.

O menino se tornou uma das minhas principais pérolas de amizade. Daquelas que sobrevivem a qualquer rede social. Éramos muito mais adeptos às redes artesanais, nascidas de culturas vivas, feitas para o descanso nas horas de cansaço.

Na rede da vida nos balançávamos como crianças! Aliás, na sua dimensão mais infantil eu me amedrontava com suas brincadeiras, afinal, sua coordenação motora era um fiasco e ele sempre se desafiava. Eu brincava com ele, no entanto, eu sempre fui menos aventureiro.

Há! Como apreciava os cafés em casa, regados a diálogos profundos! Entrecortados, divertidamente, por um personagem por ele criado e que se insurgia em meio aos textos sérios de nossos diálogos. Brincar e filosofar, filosofar brincando como criaturas livres para expressar o que sentiam.

Era um menino para se viver emoções essenciais. E eu vivi! Tão intensamente que hoje, distante delas, eu vejo a vida com uma porção menor de felicidade. Sim! A porção de felicidade daquele menino era algo insubstituível. Essencial. E o que está dentro desta categoria é eterno.

Hoje vivi na memória - cuidada como uma relíquia - os instantes lúdicos das brincadeiras dos parques, das vivências em minha casa em dias de festa, nos cafés da manha nunca mais vividos como naqueles dias, nas passeatas de protesto por justiça social, nas viagens de férias, na travessia para o Mestrado e sua firme defesa de tese na USP, no carinho dele com meus familiares e amigos - só os que ele topava - nos saraus onde a sua veia indignada gritava, nos torpedos noturnos que traziam algum sabor aos dias mais amargos, no meu aniversario de 40 anos em Camaragibe...

 É... Memória é como um baú onde nos movimentos dos pequenos ciclos vamos visitá-lo para degustar saudade e ver um pedaço de felicidade ali dentro, sem permissão para se libertar, pois só ali ainda existiria. Memória é um cantinho onde o encontro - ponte se realiza na intermediação das fotos, dos amigos, dos escritos...

Quando aquele menino começava a sonhar uma nova travessia, a fez, sem desejar, atravessando uma ponte para o mistério. O menino sonhador foi encontrado sem vida, dentro de seu quarto, no Acre. Ao saber, esse seu amigo saiu a comunicar aos afetos em comum aquela que era a notícia mais triste anunciada por ele.
  
 

Ah! Como eu queria que ele, onde estivesse, fosse “à caixa dos milagres e roubasse três, com o primeiro fizesse com que ninguém soubesse que ele tinha fugido. Com o segundo se criasse eternamente humano e menino (...)” e, com o terceiro, que ele vivesse “na minha aldeia” comigo e com os nossos saudosos amigos.

Um ano sem NALDO 
é um tempo 
sem a indispensável 
emoção essencial.

Gilson Reis

30.05.13

Um comentário:

  1. Bonita homenagem, Gilson. O Naldo realmente foi muito especial. Eu admirava sua garra, coragem de confronto, físico e intelectual, em defesa das minorias, dos menos favorecidos...Enfim, um amigo, companheiro!

    ResponderExcluir