As andanças por esses saraus da cidade me permite conhecer pessoas e
textos que igualmente impressionantes. Foi assim na terça-feira passada quando
conheci o poeta Paulo D’Auria, no Sarau Encontro de Utopias, declamando o texto
abaixo. Espero que o Paulo não fique zangado comigo por estar socializando seu
texto nesse espaço. Um dia vou declamá-lo num desses saraus. É o tipo de texto
que me cativa de imediato e vê-lo recitado de maneira tão intensa foi uma experiência
religiosa, no melhor sentido da palavra.
O Evangelho
Segundo São as Ruas
25 de dezembro
de 1980, Jesus Cristo voltou! Nascido em família pobre em meio à seca do norte,
não tiveram outra saída a não ser descer para São Paulo. Mas eram os anos da
carestia, dos panelaços, dos arrastões em supermercados. A mãe, acostumada a
paz do campo, não resistiu a tamanha mudança: enlouqueceu. O pai ainda buscou
tratamento em hospital público mas, não tinha vaga, não tinha vaga, não tinha
vaga. De volta pra casa, a louca não durou muito, fugiu, sumiu nas ruas da
cidade.
O pai foi
vivendo como pôde, de bicos. Mas o aluguel mês a mês parecia cada vez maior.
Nunca soube explicar direito como foram parar na rua.
Jesus Cristo
voltou! E foi pivete de farol, limpou vidro, vendeu bala, foi xingado, quase
atropelado,
tomou cusparada na cara, se fortaleceu.
Fazia suas
correrias durante o dia, à noite tomava seus goles com o velho e iam dormir.
Sempre com um olho aberto.
Foram anos
bons, duraram pouco. Tinha dezessete anos Jesus no dia em que seu pai
partiu e se
viu sozinho neste mundão chamado São Paulo. Só ele e sua carroça de catador.
Teve doze
amigos, uma mulher. Nunca teve filhos. Dizem que fundou uma cooperativa, que
foi um desses líderes ouvido e respeitado por todos os catadores. Dizem que até
milagre o homem fez. E que foi por isso que o polícia andou no seu encalço, interrogando,
dando porrada em torto sem direito. Dizem que até dinheiro grosso o polícia ofereceu.
E, numa dessas, lhe cantaram a bola.
Jesus Cristo
voltou, tinha 33 na noite em que, debaixo de anônimo viaduto no Bresser, ele e
mais dois companheiros foram queimados vivos. Nessa noite São Paulo dormia com
os dois olhos fechados.
Paulo D`Auria
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