quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Tragédia Concretista

O poeta concretista acordou inspirado. Sonhara a noite toda com a namorada. E pensou: lábio, lábia. O lábio em que pensou era o da namorada, a lábia era a própria. Em todo o caso, não pior das hipóteses já tinha um bom começo de poema. Todavia, cada vez mais obcecado pela lembrança daqueles lábios, achou que podia aproveitar a sua lábia e, provisoriamente desinteressado da poesia pura, resolveu telefonar à criatura amada, na esperança de maiores intimidades e vantagens. Até os poetas concretistas podem ser homens práticos.
Como, porém, transmitir a mensagem amorosa em termos vulgares, de toda a gente, se era um poeta concretista e nisto justamente residia (segundo julgava) todo o seu prestígio aos olhos das moças? Tinha que fazer um poema. A moça chamava-se Ema, era fácil. Discou. Assim que ouviu, do outro lado da linha, o "alo" sonolento do objeto amado, foi logo disparando:
- Ema. Amo. Amas?
- Como? - Surpreendeu-se a jovem. - Quem fala?
- Falo. Falas. Falemos.
A pequena, julgando-se vítima de um "trote", ficou por conta e, como era muito bem-educada (essas meninas de hoje!), desligou violentamente não antes de perpetrar, sem querer, um precioso "hai-kai" concretista:
- Basta, besta!
O poeta ficou fulminado. Não podia, não podia compreender. Sofreu, que também os concretistas sofrem; estava realmente apaixonado, que também os concretistas se apaixonam, quando são jovens - e todo poeta concretista é jovem. Não tinha lábia. Não teria os lábios. Porque não viajar para a Líbia? Desaparecer. sumir... Sentia-se profundamente desgraçado. Inútil. Um triste. Um traste.
O consolo possível era a poesia. Sentou-se e escreveu:
"Bela. Bola. Bala."
O que, traduzido em vulgar, vem a dar nesta banalidade: "A minha bela, não me dá bola. Isto acaba em bala."
Não acabou, naturalmente. Tomou uma bebedeira e tratou de arranjar outra namorada, a quem dedicou um soneto parnasiano. Foi a conta. Casaram-se e são muito falazes... oh! Perdão: felizes.

Luiz Martins.
Seleção: Joaquim Ferreira dos Santos - AS CEM MELHORES CRÔNICAS BRASILEIRAS

Um comentário:

  1. Vida concreta...
    Cidade concreto...
    Quanta concretude, meu Deus!
    Valeu!
    Chico

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